1. O próximo poema surge da falta. Nenhum poema foi jamais escrito por causa do excesso, mas devido à falta de algo. Este “algo” pode bem ser chamado vida: um poema é o resultado necessário do afastamento da vida, porque é um forrador de vida, uma forma quintessencial, uma espécie resistente como os trilobitas. Um sintoma da falta de vida, oferece uma forma agônica ou exuberante de conciliação com essa sensação de estar-se falto de algo, que vem com a vida mesma; digamos, oferece oxigênio à máscara de oxigênio que não podemos tirar, devido à nossa humanidade, de nossas caras desconhecidas ou indesejadas.
2. O próximo poema surge da generosidade . Mesmo que um poema emerja de uma atitude física liberadora, como a maior parte deles faz, jamais será verdadeiramente lido ou ouvido se o poeta não se dispuser a dar-se. Não me refiro somente ao topos cristão de dividir as nossas misérias, que bem pode ser uma força ética ou sensórea importante para a escritura de um poema. Melhor dizendo, tenho em mente a comunhão do tempo, que é a coisa mais difícil de compartilhar, porque quando um de nós está vivendo o outro está morrendo, assim como, para o nosso ulterior desconforto, as células e as estrelas continuamente estão.
3. O próximo poema surge do acaso . Nenhum poema atinge o seu ápice se não derivar da noção de que ele poderia não ser escrito, se não for perdível, se o poeta não experimentar a sua perda enquanto lhe dá forma. Já que o silêncio será sempre o maior poema, já que nenhum verso ou palavra é de fato fundamental, o poema não pode evitar a indeterminação. Em si, a escavação de um poema trabalha em duas direções opostas,uma vez que ele luta tanto por alcançar como por apagar o significado que designa. Assim, equilibra-se no gume da linguagem e imita a sua natureza mais profunda, de ser o nomeador e o simultâneo des-nomeador das coisas, o revelador e o ocultador dos fatos, um iceberg aleatório que ao dia oferece apenas a sua ponta, enquanto continua a fundir-se. Um poema é tanto uma recordação da utopia do dizer quanto uma confirmação dos seus abismos.
4. O próximo poema surge do medo . O deus de marfim é demasiado imenso, seu ventre demasiado protuberante: não nos deixemos perder nas suas dobras nem nos permitamos a armadilha dos seus intestinos nos quais, onde como em qualquer outro, a merda, solenemente, reina. Nenhum poema pode ser escrito mil vezes; nenhum pode sê-lo mesmo duas. Sabendo ou não que o poema pode simplesmente não ser escrito, o poeta o escreve num hic et nunc , numa língua ou noutra ou num conjunto de línguas, sobre uma folha de papel ou num chip de computador, sobre o mármore ou na areia, face a um panteão inteiro de predecessores ou num esquálida solidão literária. O pavor é a única condição: la réussite virá apenas depois de amestrá-lo, e nada saberemos se não tentarmos. O leopardo do mosaico poderá desdobrar-se em significados quanto quiser, poderá incitar o céu africano, sugerir as safiras com as quais a Imperatriz adorna o seu torso ou todo um alfabeto de castigos terríveis, mas antes ele tem que estar lá, imóvel, sobre a parede.
5. O próximo poema surge do brilho . A unicidade de um poema soma à sua superfície uma pátina instável. Isto não quer dizer que quanto mais velho melhor, e quanto mais repetido, mais canônico: sua autoridade elide a sua popularidade, e seu brilho a sua brilhantez, seu wit . Um poema pode não ser lavrado como uma jóia, e o poeta não ser o ourives que os parnasianos idealizaram, entretanto algo brilha dentro deste mini-graal, que não é o sangue de Cristo nem de ninguém, mas o plasma que permite ao poema o seguir sendo único. A busca da originalidade não valerá nada, assim como ilusória poderá ser a devoção à “poesia” ou ao “poético”: a pátina é intransitiva e obedece às suas próprias leis. Pode ser enganadora, por mostrar-se hoje e desaparecer sem aviso prévio amanhã. O poeta apenas escreve e confere se o brilho está no poema ou, o que acontece muito mais frequentemente, em Marte, em definitivo. Mesmo assim, se ele considerar que o brilho de fato aí está, bem, então não haverá nada a fazer afora esperar que este não desapareça daqui a algum tempo. Entretanto, o poeta ainda almeja desvelar o brilho, a seu único e exclusivo risco. Num mundo no qual uma forma indigesta de relativismo tornou-se o instrumento ideológico para amolecer as consciências, o próximo poema brilha em indisputável absolutez.
6. O próximo poema surge da futuridade . Por favor, isto não é um sobreentendido, e não quer dizer que “a thing of beauty is a joy forever”, outrora um verso de Keats que virou, de uma maneira pós-moderna e “light”, um motto de uma campanha publicitária de De Beers. Por um lado, o futuro é o tempo natural para a conjugação de qualquer obra de arte, e esta, a única coisa que em nossa civilização tenta desafiar a gravitação do momento, e a maior simulação da Graça numa era sem deus. Entretanto, o futuro parece estar superado, como idéia, e a noção de progresso, por muito tempo a ele agregada, hoje é certeiramente considerada letal, devido, no particular, aos efeitos que teve, e ainda tem, sobre o meio ambiente. Ainda, um poema não é per se : é a sua subsequente leitura o que, através de sua constante reinvenção, o faz girar dentro e fora do fluxo principal da história. Se sempre foi assim, e se isso sempre deu o impulso para a palavra poética, contudo o próximo poema tem que suportar o fato de que ele representa o futuro, não em nenhum sentido “futurístico” -porque o que acaba de ser dito nada tem a ver com a estética mas com a ética-, porém num sentido muito mais humano: o próximo poema está para os tempos por virem porque esta foi, é, e será a sua quota.
O próximo poema, como o vejo, será falto, generoso, aleatórico, temeroso, brilhante e orientado ao futuro. Então! o próximo poema já é privado de vida e generoso para com ela, abraça o acaso e portanto teme o seu poder, e intenta brilhar tanto quanto espera ser (i)limitado pelo futuro.
Não sabemos por quanto tempo a venerável cidade de Praga ficará onde está, bordando as margens do Vltava. Não podemos dizer quão real é Lisboa, como alguma vez afirmou Fernando Pessoa, quão de fato distante San Diego se encontra da Cidade do México, ou quão profundamente São Paulo, Madrid ou Königstein-im-Taunus afundarão na memória dos que nos sobreviverem. Estamos reunidos ao redor de uma mesa, graças à gentil loucura de Milos, que nos convidou para que viéssemos aqui. Celebramos a edição de um poema que eu escrevi há alguns anos, quando descobri que a minha mandíbula tinha segredos próprios, e do qual estou orgulhoso. O Menino e o Travesseiro pode ser uma boa peça, talvez o melhor que eu tenha escrito; ainda assim, ⁄adiós, golondrina! , já não me pertence.
(Parte do discurso de apresentação, originalmente escrito em inglês, da edição do poema O Menino e o Travesseiro [San Diego, Ettan Press, 1994, com prólogo de José Saramago e nove águas-fortes originais de José Hernández], lido em Praga, República Checa, em outubro de 1995).
2. O próximo poema surge da generosidade . Mesmo que um poema emerja de uma atitude física liberadora, como a maior parte deles faz, jamais será verdadeiramente lido ou ouvido se o poeta não se dispuser a dar-se. Não me refiro somente ao topos cristão de dividir as nossas misérias, que bem pode ser uma força ética ou sensórea importante para a escritura de um poema. Melhor dizendo, tenho em mente a comunhão do tempo, que é a coisa mais difícil de compartilhar, porque quando um de nós está vivendo o outro está morrendo, assim como, para o nosso ulterior desconforto, as células e as estrelas continuamente estão.
3. O próximo poema surge do acaso . Nenhum poema atinge o seu ápice se não derivar da noção de que ele poderia não ser escrito, se não for perdível, se o poeta não experimentar a sua perda enquanto lhe dá forma. Já que o silêncio será sempre o maior poema, já que nenhum verso ou palavra é de fato fundamental, o poema não pode evitar a indeterminação. Em si, a escavação de um poema trabalha em duas direções opostas,uma vez que ele luta tanto por alcançar como por apagar o significado que designa. Assim, equilibra-se no gume da linguagem e imita a sua natureza mais profunda, de ser o nomeador e o simultâneo des-nomeador das coisas, o revelador e o ocultador dos fatos, um iceberg aleatório que ao dia oferece apenas a sua ponta, enquanto continua a fundir-se. Um poema é tanto uma recordação da utopia do dizer quanto uma confirmação dos seus abismos.
4. O próximo poema surge do medo . O deus de marfim é demasiado imenso, seu ventre demasiado protuberante: não nos deixemos perder nas suas dobras nem nos permitamos a armadilha dos seus intestinos nos quais, onde como em qualquer outro, a merda, solenemente, reina. Nenhum poema pode ser escrito mil vezes; nenhum pode sê-lo mesmo duas. Sabendo ou não que o poema pode simplesmente não ser escrito, o poeta o escreve num hic et nunc , numa língua ou noutra ou num conjunto de línguas, sobre uma folha de papel ou num chip de computador, sobre o mármore ou na areia, face a um panteão inteiro de predecessores ou num esquálida solidão literária. O pavor é a única condição: la réussite virá apenas depois de amestrá-lo, e nada saberemos se não tentarmos. O leopardo do mosaico poderá desdobrar-se em significados quanto quiser, poderá incitar o céu africano, sugerir as safiras com as quais a Imperatriz adorna o seu torso ou todo um alfabeto de castigos terríveis, mas antes ele tem que estar lá, imóvel, sobre a parede.
5. O próximo poema surge do brilho . A unicidade de um poema soma à sua superfície uma pátina instável. Isto não quer dizer que quanto mais velho melhor, e quanto mais repetido, mais canônico: sua autoridade elide a sua popularidade, e seu brilho a sua brilhantez, seu wit . Um poema pode não ser lavrado como uma jóia, e o poeta não ser o ourives que os parnasianos idealizaram, entretanto algo brilha dentro deste mini-graal, que não é o sangue de Cristo nem de ninguém, mas o plasma que permite ao poema o seguir sendo único. A busca da originalidade não valerá nada, assim como ilusória poderá ser a devoção à “poesia” ou ao “poético”: a pátina é intransitiva e obedece às suas próprias leis. Pode ser enganadora, por mostrar-se hoje e desaparecer sem aviso prévio amanhã. O poeta apenas escreve e confere se o brilho está no poema ou, o que acontece muito mais frequentemente, em Marte, em definitivo. Mesmo assim, se ele considerar que o brilho de fato aí está, bem, então não haverá nada a fazer afora esperar que este não desapareça daqui a algum tempo. Entretanto, o poeta ainda almeja desvelar o brilho, a seu único e exclusivo risco. Num mundo no qual uma forma indigesta de relativismo tornou-se o instrumento ideológico para amolecer as consciências, o próximo poema brilha em indisputável absolutez.
6. O próximo poema surge da futuridade . Por favor, isto não é um sobreentendido, e não quer dizer que “a thing of beauty is a joy forever”, outrora um verso de Keats que virou, de uma maneira pós-moderna e “light”, um motto de uma campanha publicitária de De Beers. Por um lado, o futuro é o tempo natural para a conjugação de qualquer obra de arte, e esta, a única coisa que em nossa civilização tenta desafiar a gravitação do momento, e a maior simulação da Graça numa era sem deus. Entretanto, o futuro parece estar superado, como idéia, e a noção de progresso, por muito tempo a ele agregada, hoje é certeiramente considerada letal, devido, no particular, aos efeitos que teve, e ainda tem, sobre o meio ambiente. Ainda, um poema não é per se : é a sua subsequente leitura o que, através de sua constante reinvenção, o faz girar dentro e fora do fluxo principal da história. Se sempre foi assim, e se isso sempre deu o impulso para a palavra poética, contudo o próximo poema tem que suportar o fato de que ele representa o futuro, não em nenhum sentido “futurístico” -porque o que acaba de ser dito nada tem a ver com a estética mas com a ética-, porém num sentido muito mais humano: o próximo poema está para os tempos por virem porque esta foi, é, e será a sua quota.
O próximo poema, como o vejo, será falto, generoso, aleatórico, temeroso, brilhante e orientado ao futuro. Então! o próximo poema já é privado de vida e generoso para com ela, abraça o acaso e portanto teme o seu poder, e intenta brilhar tanto quanto espera ser (i)limitado pelo futuro.
Não sabemos por quanto tempo a venerável cidade de Praga ficará onde está, bordando as margens do Vltava. Não podemos dizer quão real é Lisboa, como alguma vez afirmou Fernando Pessoa, quão de fato distante San Diego se encontra da Cidade do México, ou quão profundamente São Paulo, Madrid ou Königstein-im-Taunus afundarão na memória dos que nos sobreviverem. Estamos reunidos ao redor de uma mesa, graças à gentil loucura de Milos, que nos convidou para que viéssemos aqui. Celebramos a edição de um poema que eu escrevi há alguns anos, quando descobri que a minha mandíbula tinha segredos próprios, e do qual estou orgulhoso. O Menino e o Travesseiro pode ser uma boa peça, talvez o melhor que eu tenha escrito; ainda assim, ⁄adiós, golondrina! , já não me pertence.
(Parte do discurso de apresentação, originalmente escrito em inglês, da edição do poema O Menino e o Travesseiro [San Diego, Ettan Press, 1994, com prólogo de José Saramago e nove águas-fortes originais de José Hernández], lido em Praga, República Checa, em outubro de 1995).
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